sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

"Carta de Amor a uma Barriga" Luís Gouveia Monteiro

Ainda não consegui ler até ao fim sem chorar como uma Madalena, estas hormonas andam a dar cabo de mim...

"Barriga informe, do tamanho do mundo, toma bem conta de ti. Sítio mágico, redondinho, a vida és tu. Cresce, não deixes o mundo à tua espera. Talvez eu ainda não saiba, mas daqui a pouco - antes de ti - não havia nada. Anda barriga, a única coisa que o sol queima é o desgosto, barriga. Não tenhas medo do mar, basta respeito. Não te salves, não percas tempo com isso e nunca compres uma mesa de café em que não possas descansar os sapatos.

Se as tuas mãos forem brancas como as primeiras neves, poupa-lhes o negrume da espera. Trata de as oferecer por inteiro a quem vir em ti uma criança. Treina muito bem a memória, vais precisar de esquecer. Trata-me por tu. Curte música, gosta de coisas, abraça pessoas e anda de costas direitas. Aprende a falar em silêncio, com o corpo.

Bem podes argumentar que se está bem no quentinho, o quanto à gente custa a sair da cama pela manhã. Mas não me venhas dizer que os tempos estão maus. Lembra-te que todas as eras e todas as civilizações se queixam de paraísos perdidos. Vão sempre dizer-te que dantes é que era, nem que vivas mil anos. Desconfia.

Não deixes que ninguém te trate como se fosse mais ou menos que tu. Mais vale que te apaixones cedo pelos animais e que descubras depressa o mistério da natureza. Sabias que a alma dos cães é do tamanho das nossas? O universo ainda está todo por explicar, tens muito trabalho para fazer, anda. Ainda me vais explicar a teoria das cordas.

É que tu, barriga, ainda és tudo o que nós já não podemos ser.Toda tu és potência, possibilidade e hipótese. Se espirras, constipa-nos. Toma o teu tempo, perde-te. Mas começa já a levantar cidades aí dentro. Mobila-te, vais precisar dos teus edificios, dessa roupa interior. Principalmente no Inverno. Estuda meteorologia para perceberes que o mau tempo é uma coisa exterior. Imagina a chuva e bebe muita água.

Anda cá ver isto, barriga do coração, sê curiosa. Expande-te, descobre o limite das coisas, o instante em que deixam de ser o que são e começam a ser outras coisas. Interessa-te pelas conversas idiotas, interessa-te por tudo. Deslumbra-te, deixa-te enganar. Muda tudo e recomeça. Não deixes a melhor roupa para o dia seguinte, usa-a. Ousa, nunca se sabe.

Ninguém sabe o que é a vida, a não ser tu. Mas eu acho que a vida é um ponto de embraiagem gigante, impossivel. As ciências deixaram outra vez de ser exactas, os principais mistérios continuam intactos. A gente precisa das crianças do futuro. A terra moral também é redonda. Levanta amarras, barriga!

Escolhe um Deus que não venha da culpa. Organiza as tuas forças e não deixes que as tuas defesas te ataquem. Joga muito à bola, prepara-te para as coisas. Cuida do teu sistema nervoso, treina a atenção. Aprende a nadar porque os naufragos precisam da carta de marinheiro. Inventa, tem cuidado com o infinito, mas não o leves a sério. Não nos leves a sério.

Pensa bem nas coisas e trata bem a tua mãe, que anda contigo ao colo, não faças peso. Quando entrares numa sala enche-a de luz. Se ainda levares as costas direitas vai ser mais fácil. Dá o peito, mas evita as balas. Todas as noites te lançarei feitiços ao umbigo, quando ainda não souberes o nome das coisas, apenas os sons, faz mais efeito. Farei promessas, hei-de pedir que gostes sempre de mim e que nunca me deixes. Não será a primeira vez, nem a última. Depois serás tu a encher-nos de magia. Vai valer a pena, barriga, manda-te ao mundo.

O tempo anda devagar, no inicio. Aproveita para deixar coisas feitas, por exemplo as linguas. Aprende a gostar de estudar, é bem melhor do que trabalhar. Considera a hipótese de rebentares na véspera de um feriado para teres noites de aniversário a vida toda. Havemos de te dar uma boa mesada para ofereceres flores às outras barrigas.

Mas, ó barriga, que sei eu? Tudo me parece também o contrário. Quero que cresças, hei-de querer que encolhas quando fores do meu tamanho. Não me ouças, barriga, anda só e depressa. Não quero que me salves, tem mais que fazer, mas faz de mim um homem e faz de ti um miúdo."

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